terça-feira, 9 de junho de 2009

DIAGRAMAS

FIGURA 1 . JOHN LAMPREY . MALAYAN MALE . ANTHROPOMETRIC STUDY . 1868-69

I. CONTEXTO
O projecto com o nome de “diagramas” resulta do desenvolvimento teórico do laboratório de iniciação à fotografia analógica, movimento perpétuo, o tempo na imagem, espaço de formação e investigação em fotografia do Núcleo de Arte Fotográfica da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico tendo como tema base o movimento.
Numa presente sociedade assente sobre a imagem será pertinente questiona-la?
Numa presente sociedade onde as nossas decisões são constantemente condicionadas, quer seja na forma como somos conduzidos aos produtos que consumimos, quer na forma como nos observamos, esta redefine-nos, molda a nossa visão de nós próprios e do que nos envolve.
Será pertinente questionar a razão que leva ao aparecimento do corpo humano nos meus de comunicação de uma forma standardizada? Porquê uma tipologia para a constituição física humana? Que consequências terá o uso deste padrão que generaliza algo singular?
Como percepcionar e reconsiderar um corpo que está a ser constantemente reconstruído pelos avanços da ciência e da engenharia?
FIGURA 2 . DR GUILLAUME-BENJAMIN DUCHENNE . ANALYSE ÉLECTRO-PHYSIOLOGIQUE 
DE LÉXPRESSION DES PASSIONS . 1852-56
II. INTRODUÇÃO / REFERÊNCIAS
Nos finais do século XIX questiona-se o corpo humano, sobre o lugar de direito do mesmo na ciência e na arte, tendo a fotografia um papel importante neste registo.
“Questões raciais, concepções de beleza, sexualidade e natureza humana, crenças de decência e moralidade, conceitos de selvajaria, civilização e lutas entre classes sociais, são temas que condicionam as interpretações das fotografias que surgiam nos meios de comunicação social da época (…) Numa época conservadora onde a cara e as mãos eram as únicas partes dos corpos expostas, consequentemente, aumentava o desejo da compreensão do mesmo, desenvolviam-se as ciências denominadas frenologia, fisiologia e antropologia. Apoiadas sobre a “veracidade” inquestionável da fotografia, registar-se-iam sujeitos no seio das suas culturas, medindo, analisando e classificando as diferenças entre eles, partindo sempre do principio que o corpo é a chave para a compreensão da raça e da cultura.” William A. Ewing, tradução do livro The Body
Nos finais de 1860s T. H. Huxley e John Lamprey desenharam procedimentos standards para a fotografia etnográfica. O sujeito despido pousava de pé e sentado, de frente para a câmara ou de perfil. Huxley colocava os sujeitos juntos de uma régua e Lamprey colocava-os em frente a malha métrica quadrangular.
FIGURA 3 . ALPHONSE BERTILLON . MEASUREMENT OF THE CUBIT
1893 WORLD'S COLUMBIAN EXPOSITION IN CHICAGO
“O século XIX reflectiu a esperança depositada na ciência para desvendar os mistérios do corpo humano tal como satisfazer as altas expectativas que a fotografia criava como ferramenta. O que aparentemente partilharam os investigadores da época foi o desejo de tornar visível o invisível. Wilhelm Konrad Rontgen inventou o Raio-X, fotografias do interior do corpo humano sem que este tivesse de ser aberto.”
William A. Ewing, tradução do livro The Body
A partir de 1862 o professor Charcot, especialista em patologias anatómicas, não usou apenas a câmara para as suas funções específicas, mas como uma forma de percepção mais vasta da doença e tratamento. Charcot acreditava que através da fotografia não se obtinha uma visão directa e sim uma forma de percepção. As fotografias eram tiradas nas várias fases da doença dos pacientes e do seu tratamento.
Em 1882 surgiu o primeiro método de registar a identidade criminosa por Alphonse Bertillon.
Consistia em fotografias de perfil e de frente, acompanhadas das medidas do crânio, dos braços esquerdos, dos dedos esquerdos, dos pés esquerdos e do peso do corpo. Bertillon sabia que sem a estandardização e precisão dos retratos compará-los seria insignificante, a identidade não seria possível de ser criada com certeza absoluta.

FIGURA 4 - EADWEARD MUYBRIDGE, NUDE DESCENDING A STAIRCASE


A “photomicrografia” permitiu ao cirurgião do exército americano H. j. Woodward demonstrar que o cancro é a mutação de uma cela do corpo e não um organismo externo. Permitiu ao fotógrafo George R. Rockwood uma publicação na Photographic News intitulada “teoria photophisiológica”. Analisando microfotografias do tecido cerebral, descobriu o que lhe pareciam ser símbolos chineses ou hieróglifos, “imagens impressas no cérebro” que permitiriam, segundo ele, extrair de um cérebro de um cadáver poemas póstumos, segredos de família, opiniões reprimidas, ou mesmo o segredo da vida.
Em 1882 o fotografo Albert Londe junta-se a Paul Richer, médico e professor de anatomia, e desenvolveu o método fotográfico “photochronographico” nos pacientes com desordens nervosas, método que consistia em usar uma câmara de 12 lentes capturando os movimentos não percepcionados pelo olho humano.
Outro dos interesses da ciência do século XIX é o movimento: fisionomistas procuravam decifrar diversos fenómenos físicos dos quais o movimento era a base da questão. A fotografia tem um papel bastante importante nesta investigação. Eadweard Muybridge, Etienne-Jules Marey, Albert Londe, Paul Richer e mesmo Duchenne estudavam o “físico em movimento”

FIGURA 5 . ETIENNE-JULES MAREY . MAN WALKING . 1890-91


“A fotografia seria o instrumento que media rigorosamente “amplitude, força, duração, regularidade e forma”. O filósofo François Dagognet definiu a fotografia como, “capturar e traduzir fenómenos numa rede de inscrições, onde no princípio ficou visível, depois legível (isso é, inteligível) (…) dessa forma Marey esperava atingir o seu objectivo: “a linguagem da natureza”. ( William A. Ewing, tradução do livro The Body)




III. DESENVOLVIMENTO

Uma cabeça, um tronco, dois braços e duas pernas, será certamente a descrição representativa do corpo humano a que estamos habituados, percepção educada segundo padrões culturais e temporais.
Pretendendo continuar e alargar a forma de registo do corpo humano e do movimento implícito no mesmo quando este se encontra imóvel, partimos, desta forma, da visão arquétipo do mesmo fotografando-o de pé sem roupa, de costas para a câmara, contra um fundo regrado. Processo sustentado pelos estudos científicos realizados no passado, registam-se diferentes corpos contra o mesmo fundo, individualmente, com o mesmo enquadramento e à mesma distância da câmara produzindo um conjunto de imagens homogéneas.
O nome de “índice- lista de matérias, capítulos ou termos contidos num livro; catálogo; tabela; rol alfabetado; relação entre duas medidas segundo o Dicionário Porto Editora - poderia aplicar-se melhor a este projecto que diagramas, se o nosso objectivo fosse só catalogar/documentar os diversos corpos humanos que existem. Contudo, usamos antes o nome diagramas por acrescentar à síntese presente no índice uma possível interpretação.
Ao ultrapassar a evidente e comum barreira representativa do corpo humano as suas particularidades poderão sobressair, atingindo-se, desta forma, a singularidade dentro de uma imagem plural, a possível compreensão da unidade no seio da diversidade.
diagrama, s. m. representação gráfica de um determinado fenómeno; bosquejo; delineamento; escala musical. (Dicionário Porto Editora)
Gilles Deleuze escreve em Francis Bacon: a lógica da sensação relativamente ao método de pintar do mesmo, “o diagrama é o exemplo operatório das linhas e das zonas, dos traços e das manchas assignificantes e não representativas (…) essas marcas, esses traços são irracionais, involuntários (…) não são representativos, não ilustrativos, não narrativos. Mas não são significativos nem significantes de antemão: são traços assignificantes. São traços de sensação, mas de sensações confusas (as sensações confusas que trazemos ao nascer, dizia Cézanne)”
Pretende-se com este estudo registar e mapear as diferentes tipologias do corpo humano, diferenças volumétricas, simetrias e assimetrias, desequilíbrios e consequentes reacções à força da gravidade. Quer se manifestem num único corpo, quer se manifestem na relação entre os vários corpos ou até mesmo no corpo total, formado e delineado pelas diferentes alturas e larguras dos vários corpos. Um corpo total que constituímos e somos, feito também de movimento continuo e relacional.
Trata-se de registar o movimento inerente, presente microscopicamente no corpo humano que, mesmo em quietude e aparente silêncio, conta a história de cada indivíduo. Quais as zonas com maior movimento, quais a com menor, as mais caracterizadas ou utilizadas, quais as suas histórias e memórias, quem é este corpo?

FIGURA 6 . JOHN COPLANS . SELF-PORTRAIT . 1984

IV. OBJECTIVOS

No século XIX descreve-se a fotografia como a descrição “microscópica da natureza”. A palavra “microscópica” sugere uma sensação de revelação, como se nunca antes ninguém observasse o mundo físico tão próximo.
“Um estudo de 1986 de André Rouillé define a diferença entre o retrato e nu, sujeito e objecto. Num retrato a pessoa retratada inicia uma transacção sendo o fotógrafo um mero intermediário, no nu, a transacção é inversa, o fotógrafo inicia o evento, o corpo é despersonalizado e transforma-se em objecto. Semelhante à fotografia cientifica e antropológica o nu artístico é uma imagem feita por e para a compreensão de outros.”
A fotografia como ferramenta para registar nus artísticos desenvolveu um clima de insegurança e de ansiedade entre os modelos pois, ao contrário da pintura, estes não estavam dependentes da capacidade de interpretação do artista mas sim de uma leitura fiel da natureza.”
William A. Ewing, tradução do livro The Body
Actualmente a sociedade continua a depender da lente fotográfica para compreender a sua envolvente, de tal forma que esta visão condiciona a forma como nos vemos como indivíduos, define-nos, estabelece um padrão onde nos devemos enquadrar para lhe pertencer. Ao estabelecermos um registo científico, para além das já muitas interpretações e imagens do corpo oferecidas na sociedade, procuramos mostrar o corpo tal como ele é. Um registo que permita a clareza e precisão, mas que também dê espaço à singularidade e uma maior profundidade. Um movimento constituído por corpos diferentes que fazem a diferença nos espaços que ocupam.
Exterior e interiormente. A particularidade. Um espaço feito através das histórias e desenvolvimentos de uma vida.
Ao colocarmos várias imagens do corpo nu em tamanho real, contra uma malha regrada de azulejos que os permite escalar, e expostas em conjunto, criamos uma nova possibilidade de olhar. Algo que nos é tão próximo e comum, porém tão estranho e surpreendente. Como nos colocamos perante a imagem? Percepcionamos o outro, o distante, ou o indivíduo, nós próprios?
Achamos banal pela já mediatização do corpo em si, ou atentamos ao pormenor ou à relação?
Passamos ou demoramo-nos?